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Memórias de exposições: Estudos de recepção (2015), de Clara Sampaio e Gabriel Menotti

Texto por Phoebe Coiote Degobi


O projeto curatorial Estudos de Recepção: arte contemporânea em espaços domésticos (2014 - 2015), de Clara Sampaio e Gabriel Menotti, reitera a vivacidade de proposições de arte, conciliando um fluxo de dentro para fora com o circuito da arte e da vida capixaba.


A partir da proposição de Clara e Gabriel, os anfitriões das casas onde as ações aconteceram recebiam obras de arte, artistas e espectadores, e toda a dinâmica girou ao redor do aparato mediativo que é a conversação das pessoas entre si, com o lugar e com as obras.


Nesse processo, as práticas, valores e questões específicas do mundo da arte são transportados para a esfera do doméstico, criando tensões entre os códigos próprios de cada um desses campos. (SAMPAIO, 2016)

Dentre os envolvidos no projeto, estavam os artistas Elton Pinheiro, Júlio Tigre, Mariana Antônio e Raquel Garbelotti. Os anfitriões foram Yiftah Peled e Elaine de Azevedo, Erly Vieira Junior e Waldir Segundo, Rosindo Torres, e, por último, o curador do projeto, Gabriel Menotti.


Neste contexto, o caráter experimental do projeto e a sua dependência na relação com o público para sua “efetivação” em diversas instâncias, o torna ainda mais relevante quando traçamos uma tangente em percursos afetivos e processos de criação em curadoria. Podemos considerar o procedimento curatorial como uma abertura para prolongamentos dos sentidos e afetos, levando em consideração a serendipidade de uma exposição realizada em espaço doméstico, com todos os dispositivos e particularidades que este possui.


Dialogando com este pensamento, o projeto estabelece uma relação conceitual com a imaterialidade de afetos possíveis, conversando diretamente com proposições efêmeras na arte contemporânea, que se propõem a conter e extrapolar em si fluxos temporais essenciais na produção de relações topofílicas, que dizem respeito à relação afetiva positiva quanto a um espaço. Segundo Deleuze e Guattari, sobre afetos:


Mesmo se o material só durasse alguns segundos, daria à sensação o poder de existir e de se conservar em si, na eternidade de que coexiste com esta curta duração. [...] A sensação não se realiza no material, sem que o material entre inteiramente na sensação, no percepto ou no afecto. (DELEUZE; GUATTARI, 2010)

A dinâmica de Estudos de recepção em espaços domésticos se movimentou também a partir de uma retomada de estudos de “procedimentos que o tornam disponível (o espaço doméstico) às pessoas e às coisas da arte contemporânea”. Assim, propõe dentro do projeto curatorial uma investigação entre o lugar da arte e da vida, suas tensões, disparidades e afastamentos a partir da mediação e da hospitalidade de/entre os anfitriões e artistas que integraram o projeto.


De acordo com Sampaio e Menotti, os anfitriões ficaram encarregados de receber as obras em suas casas, terem elas instaladas no ambiente por cerca de dez dias e, também, se responsabilizaram em abrir a casa ao público e a organizar estas visitas mediadas por eles mesmos (os anfitriões).



Trânsitos entre Elaine de Azevedo, Yiftah Peled e Raquel Garbelotti


A relação entre obra e espaço doméstico se tece a partir da integração do objeto de arte com artefatos e dispositivos do cotidiano, sejam as relações interpessoais familiares ou mesmo o mobiliário. Na casa de Elaine de Azevedo e Yiftah Peled, a obra de Raquel Garbelotti se expande em significações possíveis a partir da rede e dos trânsitos dos moradores entre “idas e vindas por países da Europa, o crescimento da família, as mudanças entre cidades do Sul do Brasil, a carreira acadêmica” (SAMPAIO; MENOTTI, 2015, p. 21) e outras transformações singulares do núcleo familiar perpassando aquele espaço.


Reunião com a artista Raquel Garbelotti na casa de Elaine de Azevedo e Yiftah Peled. Fevereiro de 2015. Fonte: Site do projeto.

O modelo (303(1202)), de Raquel Garbelotti, é uma maquete/planta-baixa do apartamento em que a artista vive. Tensionando a experimentação do lugar enquanto um objeto plástico, a obra propõe uma interação com o espectador a partir da dinâmica inerente à uma planta-baixa/maquete: o ponto de vista absorve o todo de um lugar específico em uma superfície ou dispositivo. Neste caso, a artista se vale de uma metalinguagem ao abrir seu apartamento - cujo número é 1202 - para visita dentro de um outro apartamento - o qual o número é 303.


Maquete do modelo (303(1202)), de Raquel Garbelotti, 2015. Fonte: Site do projeto.

Planta baixa do modelo (303(1202)), de Raquel Garbelotti, 2015. Fonte: Site do projeto.

O jogo metalinguístico acerca do ambiente doméstico também se relaciona com a proposição curatorial para pensar a afetividade e a própria recepção da obra de arte dentro de residências. Neste caso, propõe, através do tensionamento das noções de lugar, que a visita à (303(1202)) seja uma experiência estética sem entrada principal, meio ou fim, um objeto-lugar que mantém sua especificidade mesmo quando deslocado e apresentado em outras materialidades.


Ao erguer paredes inúteis ou diminuir a abertura de portas e janelas a tal ponto que as torna impossíveis de serem transpostas, Raquel transforma a experiência de ocupar o espaço num procedimento sobretudo escópico, que nos compele a reconhecer limites. (SAMPAIO; MENOTTI, 2015, p. 28)

Desta maneira, a obra cria significações relevantes ao ser justaposta a uma característica que permeia a história da família de Elaine e Yiftah, a transitoriedade. A noção de residência ou, mesmo, de lugar, é revis(it)ada e colocada em evidência pelo jogo espectatorial que a obra dá a ver.


Elaine de Azevedo e Yiftah Peled recebem visitas, abril de 2015. Fonte: Site do projeto.


Latência e aglutinação estética entre Elton Pinheiro, Erly Vieira Jr. e Waldir Segundo


Paradoxalmente, a linha de força que perpassa este momento do projeto é o movimento singelo de voltar a atenção dos sentidos - em específico, a audição - para as latências que habitam a residência de Erly Vieira Jr. e Waldir Segundo. Ambos são colecionadores de vinis, CDs e muitas outras coisas, e esse hábito de se relacionar intrinsecamente com o som se estende para além da vida juntos em casa ou de suas pesquisas acadêmicas, vez ou outra os dois atuam, juntos ou não, como DJs em festas alternativas na noite de Vitória.


Neste diálogo, os processos criativos do artista Elton Pinheiro confluem na proposição de uma escuta e investigação da latência do singular deste contexto; apresenta uma possibilidade outra para os regimes de atenção alienados ao ruído do fluxo sonoro de mídias digitais no mundo contemporâneo. Desta proposição, se expande a possibilidade de habitar todo o espaço doméstico como um ecossistema sonoro, habitado por sons cotidianos, ruídos, gestos, silêncios e narrativas afetuosas.


É à medida que nos aproximamos de seu processo reservado de criar que começamos a compreender o trabalho de Elton. É uma relação que demanda entrega e tempo, justamente o método que emprega na criação de suas obras. [...] Na proposição em questão, a matéria é o universo doméstico e seu espectro de sutilezas sonoras, com as quais o artista tem interesse em experimentar e compor. (SAMPAIO; MENOTTI, 2015, p. 44)

Cada sonoridade contida em um dado espaço é uma potência estética, que, se dado tempo e entrega, como no processo de Elton Pinheiro, desperta a potência da multiplicidade contida no uno. Segundo os curadores: “a música aqui é pensada como um conector de momentos: se inicia no estúdio do artista e é recebida na residência onde se espacializará, mas não se encerrará ali” (SAMPAIO; MENOTTI, 2015, p. 44-45).


Croqui elaborado por Elton Pinheiro, 2015. Fonte: Páginas 40 e 41 do catálogo da exposição.

À medida que se adentra a uma leitura crítica do projeto, é possível observar que o recorte curatorial gira ao redor de uma crucialidade: a confluência afetiva entre anfitriões e artistas, que se deu de maneira a se aproximar não apenas esteticamente um ou outro por um único aparato mediativo comum, mas por um olhar dos curadores de enxergar essa linha de força que atravessa as multiplicidades dessas residências e as coloca em diálogo com a arte contemporânea.



Um ou mais pontos de retorno entre Rosindo Torres e Júlio Tigre


O convite para um olhar ao pretérito e ao porvir no retorno a um dado espaço é o ponto comum sobre o qual o diálogo entre esses dois artistas se abre. A partir deste momento, a dinâmica entre os artistas Rosindo Torres e Júlio Tigre assume uma camada que propõe evidenciar a impossibilidade de “isenção perante a ruína”, a ação do tempo e as relações de trabalho na interpessoalidade humana. Em uma configuração domiciliar, que como tantas outras, é pensada para abrigar corpos-máquina, este momento do projeto e esta relação dão ver, através das transformações do espaço, a singularidade e a latência das intempéries materiais e imateriais que constituem um lar.


Visita à Rosindo Torres, janeiro de 2014. Fonte: Site do projeto.

Rosindo viveu nesta mesma casa durante toda sua infância e adolescência, e isso põe em perspectiva uma relação de nostalgia que se conecta diretamente ao instinto do retorno e se supera na sua própria natureza, que o compele a repensar esse espaço, tornando-o habitável para o seu corpo e novos princípios e maneirismos advindos de todos os deslocamentos inerentes ao ser vivente. “Dessa forma, a vida define e se imprime em cada medida da construção, numa ambição heróica de perdurar com ela” (SAMPAIO; MENOTTI, 2015, p. 59).


A expansão da significação de retorno, da própria palavra, coloca este movimento em um lugar delicado e potente, porque este envolve uma narrativa ligada à memória e ao afeto, seja bom, ruim ou qualquer coisa entre. No trabalho de Júlio Tigre, neste projeto e neste contexto específico, o artista projeta sombras a partir de castelos de carta de baralho, num movimento circular que direciona o olhar para as camadas que se desfazem e se refazem com o decorrer do tempo.



Croqui da obra de Júlio Tigre. Fonte: Páginas 56 e 57 do catálogo da exposição.

O ponto de retorno não é, necessariamente, uma tentativa de reconstituição e de reviver ou (re)habitar, mas de dar a ver as circunstâncias, os processos, as acumulações e os deslocamentos em maneiras possíveis de viver enquanto corpo com/em um espaço. Propiciando uma leitura sobre uma possibilidade outra de habitar, em que o indivíduo se relaciona com a casa pensando o próprio conceito de lar como uma construção moldada por narrativas e relações culturais que perpassam e são atravessadas pela arquitetura.



A casa que é nossa: entre Mariana Antônio e Gabriel Menotti


O último momento do projeto carrega todas as marcas da gestualidade afetiva que permeia Estudos de recepção, e isso acontece pela maneira como suas relações de pré-produção se sistematizaram rizomaticamente. A artista Mariana Antônio foi convidada ainda quando estava grávida, por volta de 2014, e as proposições artísticas que conduzia na época diziam muito da maneira como a vida foi transformada por este período, onde o habitar a casa se torna um momento de suma importância para o corpo e a mente na busca pela tranquilidade e descanso que o corpo demanda.


Essa atenção para o espaço doméstico durante a gravidez e a concomitante prática e processos criativos da artista foram fundamentais em um dos questionamentos trazidos pelo projeto: o que constitui um lar? Segundo a curadora Clara Sampaio, durante essa época, a produção de Mariana consistia de uma documentação por meio de fotografias, realizadas quase diariamente, sobre a dinâmica de sua casa, e suas plantas e, mesmo, dos móveis, e em seguida a artista transformava esses registros em imãs de geladeira em uma proporção aproximada de 1:1.


Vista da proposição de Mariana Antônio na casa de Gabriel Menotti. Fonte: Vídeo do projeto, 2017.

Vista da proposição de Mariana Antônio na casa de Gabriel Menotti. Fonte: Vídeo do projeto, 2017.

Nos trâmites da produção do projeto, a vida continuava a se movimentar e a atravessar toda a equipe. Coincidindo com as ações, o curador Gabriel Menotti havia acabado de se mudar para um apartamento novo, o que levanta mais uma possível camada crucial para a leitura do projeto através destes contextos afetivos que pairam sobre ele. Além disso, chegado o momento da realização da exposição, Mariana já havia concebido seu bebê, o que nos faz pensar, a partir dos registros e do próprio teor do projeto, a maneira como todas as relações, que se transformaram imensamente pelo percurso, dialogam com a proposição de repensar o espaço doméstico através da arte e, até mesmo, uma nova chave de leitura para repensar a casa como uma rede ou um conglomerado de relações, afetos e latências.


No gesto de trazer os registros da casa de Mariana para dentro da casa de Menotti, os trabalhos da artista foram expostos na cozinha do curador, convidando as visitas-espectadores a compartilharem ou, mesmo, visitarem a casa de Mariana pelo deslocamento destas janelas fotográficas.



Algumas considerações ((mínimas) não-finais)


O caráter experimental do projeto aponta para caminhos da curadoria como um dispositivo afetivo e disruptivo, pensando procedimentos possíveis para investigação e intervenção nas relações e estéticas do cotidiano e do próprio sistema da arte. A ação de elencar à casa a função de espaço expositivo, nega valores atribuídos previamente, ao mesmo passo que ressalta a importância de repensar a rede que nos constitui enquanto indivíduo e coletivo.


No movimento ou gesto curatorial pensado para Estudos de recepção, Clara e Gabriel não se ativeram às próprias ações que configuram este fazer - ao menos não às mais citadas e institucionalizadas pela academia -, mas encararam o projeto como meio para ativar novas funções e pensar a curadoria como uma possibilidade de conexão, subjetivações e encontros entre pessoas.


Daqui, evidencia-se que a curadoria, além de uma série de escolhas, é um processo de criação, como em uma obra de arte, com seus procedimentos, variantes e maneirismos próprios a partir de cada pessoa - ou pessoas - que exerce essa função, e independente de tudo, um processo que demanda uma investigação interdisciplinar, caminhando pelo afeto, pela metafísica e, principalmente, pela escuta dos arredores.


 

Referências bibliográficas


DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Percepto, afecto e conceito. IN: O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, p. 193 - 235, 2010.


SAMPAIO CUNHA, Clara. Curadoria e prática artística: reflexões sobre a curadoria contemporânea e o trânsito entre as atuações do artista e do curador. Dissertação (Mestrado em Artes). Centro de Artes, Universidade Federal do Espírito Santo. 2016. Disponível em: <https://repositorio.ufes.br/handle/10/8510> Acesso em 09 de abril de 2021.


SAMPAIO CUNHA, Clara; MENOTTI, Gabriel. Estudos de recepção: arte contemporânea em espaços domésticos. [Catálogo de exposição]. 2015. Disponível em: <http://estudosderecepcao.tumblr.com/> Acesso em 09 de abril de 2021.

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