Por Tarsis Almeida Ribeiro*
Levando em consideração o rearranjo social e os novos modelos estéticos, esta exposição virtual tem como mote a inserção da consciência do sujeito perante o constante olhar inquisidor das câmeras, sejam elas de segurança ou dos smartphones. Nesse sentido, Hackeando o sujeito, serve-se das provocações apresentadas no ensaio homônimo de Denise Ferreira da Silva “Hakear, como performado aqui, não é tanto um método, mas a recusa como modo de engajamento” (SILVA, p, 197, 2021), bem como no livro Políticas da Imagem, de Giselle Beiguelman. Esta exposição orbita na disparidade do que é capturado e dos usos feitos dessa larga produção de imagens, bem como a inserção dos corpos como um campo de disputa subjetiva na contemporaneidade. Pretende mostrar como a inserção do corpo e o apagamento da corporeidade, no sistema neoliberal tem em vistas à construção amorfa de cidadãos; na tentativa de escamotear a tese aristotélica: Zoon Politikon (animal político). Observa-se que os avanços das novas redes vem incutindo no cenário atual um emaranhado de conexões no sujeito maquínico, de forma a borrar as fronteiras entre as funções do Estado e o papel dos cidadãos, tornando-os massas amorfas. Temos como mote o híbrido-ciborgue-replicante para qual caminha o sujeito kantiano, assim indo para além dos limites da crítica com vistas a pensar novos presentes para futuros heterogêneos.
Spio: UM TODO EM SI MESMO
Spio, 2004, Lucas Bombozzi, Instalação, Aspirador robô e câmeras, 04:03 Sinopse: https://www.lucasbambozzi.net/projetosprojects/spio-robotic-installation https://youtu.be/oSGMB7rAOnI
Nesse sentido, os trabalhos reunidos têm em comum uma linguagem tecnológica própria que é extrínseca à linguagem e à visão humana. Por essa razão, é que a visão computacional adquire uma supremacia perante o sujeito, e o poder de inferir no cotidiano. A escolha de 12 obras de 7 artistas distintos tem em comum a tentativa de tradução dessa linguagem extrínseca ao Ser Humano e característica do novo regime estético, que tende a homogeneizar tudo que produzimos e vemos.
Os trabalhos aqui reunidos, como Spio (2014), trabalho realizado por Lucas Bambozzi, visa provocar ruídos com relação à presença de visitantes em relação ao robô. Assim sendo, Spio se torna o eixo que perpassa e atravessa todas as obras aqui expostas, em uma dialética entre o “objeto pronto” e os dispositivos de vigilância, evidenciando a imanência. O desequilíbrio causado pela presença elucida a ambiguidade, o equívoco e a máxima aristotélica do animal político. O sujeito contemporâneo se torna fundamental para a subsistência do modus operandi da economia liberal de likes.
VISÕES DE NUVENS: OLHAR MAQUÍNICO
CLOUD #135, Trevor Paglen , Hough Lines, 2019, Dye sublimation print, 48 x 65 in.
CLOUD #735, Scale Invariant Future Transform: Region Adjacency Graph: Watershed, 2019, Dye sublimation print, 48 x 66 in Sinopse: https://paglen.studio/2020/05/22/clouds/
Antes disso, os trabalhos de Trevor Paglen, intitulados Cloud, nos mostram a rigidez da visão das Inteligências Artificiais e dos sistemas computacionais. Trata-se de uma tentativa de descodificar como esse olhar maquínico é incapaz de formular significações e sentidos. Por esse ângulo, Trevor desvela que por trás dessa visão existem corporações que são produtoras de chaves de leitura desses vários sistemas de visão. Tais produtores impregnam suas visões excludentes, capazes de gerar novas modalidades de exclusão. As linhas presentes nas obras do Trevor mostram não só como esses sistemas veem o mundo, mas também demarcam o que é ou não visto, bem como o que podemos ou não ver. Trevor insere no debate tecnológico o campo da arte, criando um diálogo entre a história da arte (abstração na fotografia), ao fazer uso de uma tecnologia usada em drones, reconhecimento facial, sistema de vigilância e carros autônomos etc. A linguagem abstrata presente neste trabalho coloca em posição de igualdade o olhar humano e o olhar maquínico, uma vez que ambos buscam encontrar formas cognoscíveis no abstrato.
MAIS UM: SOMOS CABOS?
The vanishing of technology #7, Joanna Zylinska, Fotografia
The vanishing of technology #2, Joanna Zylinska, Fotografia Sinopse: https://www.nonhuman.photography/wires
Ainda nessa rota, The vanishing of technology, da artista Joanna Zylinska, lança luz ao fundamento básico do funcionamento das tecnologias: os cabos. O trabalho estabelece uma relação entre ética e estética, que será abordado um pouco mais adiante. No entanto, antes disso, aponta para um certo limite estabelecido pelos cabos. A artista define seu trabalho como uma proposição que: “[...] oferece uma meditação poética sobre ecologia em mudanças em nossas configurações técnicas cotidianas [...] propõe um envolvimento textual e visual entrelaçado com um momento único na história da tecnologia ” (ZYLINSKA, 2012). O trabalho apresenta uma espécie de determinismo tecnológico, por meio das fotografias de fios emaranhados. Aqui, os cabos tem sua própria imanência. Uma tatilidade única, na tentativa humana de levar ordem ao caos. Como provocação sugiro tentar organizar os emaranhados de fios sejam da sua casa ou escritório, registrar e nos enviarem suas tentativas. E a partir daí, compreender o trabalho de Joanna, como uma tentativa própria da arte de levar caos à ordem. Fica o convite para enviarem suas tentativas pelo e-mail sujeitohackeado@gmail.com. O chamado ético do trabalho se faz em reconhecer a responsabilidade humana exercida pela teoria e prática filosófica. As fotografias, de fios ocultos que são visíveis em todos os ambientes, indicam a presença humana no mundo. Esses atos de presença, implicam reconhecer o antropoceno, mesmo sabendo que “não é tudo sobre nós". Assim sendo, as obras nos lembram constantemente os modos de configurações - como conectar certos aparelhos, coordenando em um certa escala as formas de interação- e ainda aberto a novas formas - para ilustrar os itens inteligentes, que estabelecem uma comunicação que não estamos familiarizados. Os emaranhados de fios são como o bastidor no crochê: deixam de ser símbolos e passam a ser feixe de conexões materiais, destacando alguns, e também lembrando outros possíveis. O trabalho serve de lembrete de que há vida por trás da máquina.
OUTREM: UM EU EXISTENTE
Ebor street, London, da serie Street Ghost, 2012, Paolo Cirio, Fotografias, Tamanho real
80 East Houston Street, New York da serie Street Ghost, 2012, Paolo Cirio, Fotografias, Tamanho real Sinopse: https://paolocirio.net/work/street-ghosts/#pics
No que diz respeito ao trabalho de Paolo Cirio, podemos notar a reencenação do conflito social da guerra. A guerra aqui é informacional. O jogo se dá na cidade e nas telas, conectadas por fios e sujeitos. Os fantasmas de corpos reais capturados pelas câmeras do Street Views, representam o reino eterno dos dados privados e desviados. O artista faz uso da Street Art para inserir os materiais extraestéticos - as informações reunidas e disponibilizadas pelo Google, em cartazes borrados, dando um aspecto diáfano das figuras humanas, como sombras dos fantasmas digitais. Paolo exibe o excedente da biopolítica nos locais em que as informações foram coletadas, de forma a questionar o conflito entre público e privado. As figuras fantasmagóricas performam a inserção de dois mundos sobrepostos: o mundo real das coisas e pessoas e do mundo virtual. Esse mundo virtual não é menos real que o mundo real, e as mídias e interfaces servem de comprovação para os seus efeitos materiais, tal qual as obras de Paolo. Ao retornarem para o seu local de origem, em formato impresso, em que essas informações foram extraídas, faz surgir pontos de críticas, trazendo à tona o que é recalcado pela cultura.
Visões estranhas, Heather Dewey-Hagborg, 2014, Instalação, Impressão 3D, Tamanho real Sinopse: https://deweyhagborg.com/projects/stranger-visions
Visões estranhas, Heather Dewey-Hagborg, 2014, Instalação, Impressão 3D, Tamanho real, 4:17 Sinopse: https://deweyhagborg.com/projects/probably-chelsea https://vimeo.com/257272785
Provavelmente Chelsea, Heather Dewey-Hagborg, 2017, Instalação, vídeo, Impressão 3D, Tamanho real , 01:3 Sinopse: https://deweyhagborg.com/projects/probably-chelsea https://vimeo.com/234985530
As obras de Heather Dewey-Hagborg por sua vez, tanto Probably Chelsea quanto Stranger Visions carregam as mesmas proposições: o uso de DNA. Pensam em questões latentes em sua época, questões hoje que ainda carecem de uma atenção maior. Heather aponta para questões da cultura de biovigilância. Em Stranger Visions podemos notar o quão revelador pode ser itens que jamais faríamos ideias. Chicletes mascados, bitucas de cigarros, fios de cabelos. Por meio de softwares buscam reconstruir as características dos corpos nos DNAs coletados. Observa-se a tentativa de alertar para o desenvolvimento da tecnologia forense de fenotipagem de DNA e o desenvolvimento genético. Em Probably Chelsea, a artista busca reconstruir o rosto de uma ativista presa por divulgação de informações sigilosas. O trabalho é realizado por meio do DNA enviado consentidamente por Chelsea à Heather. No esforço de recriar seu rosto algoritmicamente, evidencia as formas plurais em que os dados genômicos podem dizer sobre quem é o que se é. As obras aqui selecionadas mostram a forma como os dados podem ser interpretados e quão subjetivo pode ser a leitura do DNA. Ao colocar os moldes de rostos pendurados um próximo ao outro, evoca a sensação de uma multidão diversa ao lado de Chelsea, assim a dissidente pertence ao mesmo mundo tal qual todo movimento de massa.
FINAL: UM PRESENTE PARA NOVOS FUTUROS
Google maps hack, Simon Weckert, 2017, Vídeo performance, Smartphones e carrinho de mão, 01:43 Sinopse: http://www.simonweckert.com/googlemapshacks.html https://youtu.be/k5eL_al_m7Q
#Occupy Bat Signal for the 99%, 2011, Occupy Wall Street, Projeção, 5:03 https://youtu.be/n2-T6ox_tgM
Já em Google maps hack, Simon Weckert provoca engarrafamentos, ao usar um acúmulo de smartphones. Propõe mostrar as novas formas de interações implicadas pelo advento dos mapas virtuais. Discute a forma como encontramos pessoas com as quais possamos nos envolver sexual e afetivamente. Assim, os aplicativos baseados no sistema de mapas criam novas formas de capitalismo digital e mercantilização. Simon reivindica o discurso no poder da cartografia, reformulando-o na tentativa de materializar o impacto do Google Maps na vida dos seus usuários e cidadãos. Ao criar um engarrafamento que só existe virtualmente, Simon culmina seu esforço intelectual e artístico em uma performance que estabelece como a vida moderna vem se moldando aos avanços tecnológicos sem questionamentos críticos para os seus usos. Como diz o artista: "Os mapas e modelos de mundo baseados em simulação do Google determinam a realidade e a percepção de espaços físicos e o desenvolvimento de modelos de ação" (SIMON, 2020). Nesse sentido, determinam o comportamento, as opiniões e as imagens dos seres vivos, exercendo o poder e controlando o conhecimento. Simon, ao reunir 99 smartphone em um carrinho de mão, retorna aos primórdios da tecnologia para performar uma nova forma de pertencimento às ruas, de forma a revelar a penetrante e real influência da tecnologia moderna na vida real.
Por fim, apresentamos o híbrido-ciborgue que foi a ocupação nas ruas de Nova York. Ocorrido no dia nacional de ação em 17 de novembro de 2011, o sindicato de coalizão convocou um uma marcha para recuar contra a austeridade e exigir melhorias na infraestrutura e empregos. Lotando a Union Square, Foley Square e a ponte do Brooklyn. Projetou no prédio da Verizon as seguintes declarações: 99%/ VERIFICAÇÃO DO MIC!/ OLHE AO REDOR/ VOCÊ FAZ PARTE/ DE UMA REVOLUÇÃO GLOBAL/ SOMOS UM GRITO/ DO CORAÇÃO/ DO MUNDO/ SOMOS IMPARÁVEIS/ OUTRO MUNDO É POSSÍVEL/ FELIZ ANIVERSÁRIO/ #MOVIMENTO OCCUPY/ OCCUPY WALL STREET/ lista de cidades, estados e países/ É O COMEÇO DO COMEÇO/ NÃO TENHA MEDO/ AMOR. Assim, o acontecimento mistura o símbolo já conhecido pelo imaginário coletivo do super herói Batman, de forma a convocar os manifestantes para outro ato de presença. As projeções realizadas na fachada da companhia estadunidense especializada em telecomunicações, insere nas ações de movimentos populares elementos antes não existentes na forma de se realizar ocupações. As projeções evidenciam a força popular, reivindicando para a massa amorfa uma subjetividade coletiva. O movimento Occupy, agrupa a tecnologia e cidadãos em um embate direto com as políticas neoliberais, transpassa a segurança das corporações ao subverterem as regras do jogo nas projeções em suas fachadas.
CONSIDERAÇÕES: O TODO COMO PARTE
Na tentativa de mostrar as novas formas de interação implicadas pelo advento dos mapas, dos sistemas de reconhecimento facial, do desenvolvimento genético, dos dados coletados e do uso dessas informações, esta exposição virtual re-insere o esquematismo usurpado do sujeito, na medida em que uma metacrítica se realiza: uma vez que essa exposição só se tornou possível devido ao avanço tecnológico. É por meio de aparelhos tecnológicos que se visita essa exposição, mas é também devido à existência do mundo das coisas e pessoas que tais tecnologias existem. A dialética presente nas obras e também na exposição é a desse embate do uso da tecnologia.
Hackeando o Sujeito, não visa uma reconciliação entre tecnologia e sujeito. Seu propósito é mostrar o que está por trás e quem está por trás das produções de sentido e significado dos dados, que muitas vezes violam os direitos autorais, os limites entre público e privado, borrando cada vez mais as fronteiras entre Estado e Cidadãos. Assim, quantas vezes pelo seu caminho na rua, no trabalho em casa, você se depara com uma câmera de vigilância? Para onde vão essas imagens? O que se faz com elas? Se por meio de um chiclete é possível contar mil histórias sobre alguém, o que pode ser feito com os registros na dadosfera, que em muito são alimentados por nós mesmos? Como por exemplo, o Instagram e o BeReal. Sugiro como uma forma de reivindicação e de uma presença no mundo que as pessoas interessadas possam registrar essas câmeras e nos enviarem seus registros para o email: sujeitohackeado@gmail.com , de forma a alimentar o constante tornar-se dessa exposição.
Antes de ser acusada de tecnofobia, a exposição no seu teor de filosofia da arte busca um elogio à arte contemporânea, que insere elementos extraestéticos em seu fazer. Os cabos, as imagens fantasmas capturadas pelo Google, os softwares e as Inteligências Artificiais, até mesmo o DNA. Nesse sentido, a exposição expressa o que é reificado pela cultura: a vigilância e seus paradigmas. As obras selecionadas seguem sua própria lógica, que é estética e não racional. Por meio daquela e não desta, as obras de arte autônomas seguem uma legalidade específica, que as impedem de serem submetidas a leis externas a ela (MOLINA, 2022). Assim sendo, os navegadores que ousarem por essa exposição tem um convite reforçado pelo Batsinal de se engajarem com um práxis vital libertadora. Hackeando o Sujeito estetiza o cotidiano para problematizar sua funcionalização.
Assim, o teor utópico se faz na negação. Ao partirem dessa negação determinada da realidade, do seu Outro, que é a Sociedade, dizemos o que não se pode ser, para só assim, fundarmos uma utopia que se agarra aos materiais mais desagradáveis e repelentes, condensado em sua forma as tensões não resolvidas da sociedade (MOLINA, 2022), em um novo que aparece nas obras pela negação. O trabalho de Joanna condensa bem a tentativa de aparente reconciliação por meio da arte, se mostrando contra a ordem do mundo. “É preciso ter caos e frenesi dentro de si para dar à luz uma estrela dançante” (NIETZSCHE, 2018).
Assim, a tarefa da exposição é a de se comprometer em denunciar a ordem presente na sociedade e a racionalidade instrumental. As obras selecionadas sustentam as cicatrizes dessa sociedade de onde vieram.
Antes do fim, gostaria de inserir mais questões e provocações aos visitantes: para onde caminha a sociedade que cada vez mais usurpa de seus cidadãos a capacidade de pensar criticamente? Como salvaguardar uma cultura que não mais vem das necessidades espontâneas de um povo? Para onde caminha o olhar que se satura a cada segundo com uma profusão de imagens? O que vemos quando não estamos vendo? Quem vê quando não estamos vendo? A quem interessa uma cultura da vigilância? Quais subjetividades e formas de interação social nascem dessa cultura?
Referências:
BEIGUELMAN, G. Políticas da Imagem: violência e resistência na dadosfera. São Paulo: Ubu Editora, 2021.
FERREIRA DA SILVA, D. Hackeando o sujeito: feminismo negro e recusa além dos limites da crítica. in: Pensamento Negro Radical?: antologia de ensaios. Edições N-1, 2021. p 193-255.
MOLINA, L. A arte nova e o novo na arte na filosofia de Theodor W. Adorno. São Paulo: Editora Dialética, 2022.
NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra. São Paulo: Companhia de Bolso, 2018.
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* Tarsis Almeida Ribeiro é estudante de Filosofia na Ufes.
Esta curadoria on-line foi desenvolvida na disciplina Práticas curatoriais, história(s) de exposições, ministrada pela Profa. Ananda Carvalho.
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